O Vírus Y da Batata (Potato Virus Y) e a Batata-Semente Nacional: Quem Vencerá?

Antônio Carlos de Ãvila 1;
Paulo Eduardo de Melo1; Lindolfo R. Leite 2
1/ Embrapa Hortaliças, avila@cnph.embrapa.br;
paulo@cnph.embrapa.br;
2/ Bacharel em Biologia
Faculdades Integradas da Terra de Brasília


1. O que é o vírus Y da batata? Classificação, Transmissão, Estirpes/ Subgrupos e Detecção.
O vírus Y da batata, oficialmente denominado de Potato virus Y (PVY), está classificado pelo Comitê Internacional de Taxonomia de Vírus (ICTV) na família Potyviridae, no gênero Potyvirus, sendo o PVY considerado a espécie tipo do gênero (Stanley et al., 2005). Trata-se de um vírus alongado e flexuoso com 690-790 nm de comprimento por 11-16 nm de diâmetro (1 mm = 1.000.000 nm). Na natureza, o PVY é transmitido por várias espécies de pulgões, principalmente pelo pulgão-verde-da-batata ou pulgão-do-pessegueiro (Myzus persicae) e pelo pulgão-das-solanáceas (Macrosiphum euphorbiae) de maneira estiletar, isto é, o pulgão adquire o vírus em poucos segundos e pode transmiti-lo imediatamente, mas não é capaz de continuar transmitindo por muito tempo, a menos que faça novas picadas, chamadas picadas de prova, em uma planta de batata infectada.


Embora PVY seja uma espécie de vírus, há variações e especializações dentro da espécie, chamadas de estirpes e subgrupos. É importante conhecer as estirpes porque os sintomas que causam, seu modo de transmissão e, em especial, sua agressividade podem variar muito. No passado três estirpes de PVY denominadas de PVYO, PVYN e PVYC eram as mais conhecidas:


– PVYO (“ordinary strain” – estirpe-comum): esta estirpe induz sintomas de mosaico e deformação foliar nas plantas de batata, muitas vezes dando à planta a aparência de pinheirinho. Frequentemente a infecção por esta estirpe está associada à necrose das nervuras na face inferior das folhas e nas hastes, levando à morte dos folíolos que ficam dependurados na parte mediana da planta. A identificação dessa estirpe a nível biológico se faz através da sua inoculação em plantas de fumo (Nicotiana tabacum), que mostram clareamento de nervuras, mosaico e manchas aperoladas típicas, mas não apresentam necrose (Figura 1a);
Antônio Carlos de Ãvila1; Paulo Eduardo de Melo1; Lindolfo R. Leite2 1/ Embrapa Hortaliças, avila@cnph.embrapa.br; paulo@cnph.embrapa.br; 2/ Bacharel em Biologia Faculdades Integradas da Terra de Brasília


– PVYN (“necrotic strain” – estirpe necrótica): ao contrário do PVYO, geralmente não induz sintomas de necrose na batata e sim, mosaico com rugosidade nas folhas. A denominação “necrótica” se deve ao fato da sua identificação biológica ser feita através da necrose de nervuras que esta estirpe induz em plantas de fumo (Figura 1b);


– PVYC (“common strain” – estirpe comum): esta estirpe é de muito difícil transmissão por pulgões e não há relatos de sua ocorrência no Brasil. Em batata, o PVYC induz mosaico, encarquilhamento e morte do folíolo.


Embora os sintomas da infecção das plantas de batata pelo PVY sejam característicos desta ou daquela estirpe, é preciso ter em mente que apenas a sintomatologia em plantas de batata é insuficiente para identificação de estirpes. Isso acontece porque a manifestação dos sintomas em batata é influenciada pelas condições ambientais, além de variar consideravelmente entre cultivares.
Na década de 80, foram detectados novos variantes dentro das estirpes de PVY. A esses variantes foi dado o nome de subgrupo, tendo sido classificados como subgrupos necróticos. Os subgrupos necróticos do PVY surgiram na Europa e atualmente já estão caracterizados os subgrupos PVYN:O e PVYNTN (Potato tuber necrotic ringspot disease – necrose em anel no tubérculo de batata). Porém, a variabilidade não parou por aí. Segundo informações recentes do Dr. Rudra P. Singh, do Agriculture and Agri-Food Canada, recombinantes únicos de PVYNTN têm surgido em países do continente asiático.
Dr. Singh, sob demanda de vários virologistas do mundo, disponibilizará em breve uma proposta de classificação dos subgrupos necróticos do PVY. De maneira geral, não se deve nomeá-los baseando-se somente em dados de estruturas moleculares recombinantes, ou seja, com base apenas em seu material genético. Outros parâmetros como sintomatologia distinta e perdas econômicas evidentes devem ser também considerados. Entretanto, é preciso estar muito atento porque são extremamente comuns infecções mistas de distintos variantes do PVY na mesma planta ou mesmo de distintos vírus da batata. Portanto, além do sequenciamento completo do genoma do vírus, é necessário verificar a reproducibilidade dos sintomas. Outras espécies de vírus, conhecidas ou não, também podem infectar em conjunto com o PVY a mesma planta de batata, induzindo sintomatologia distinta devido ao efeito de sinergismo entre elas.


O subgrupo PVYN:O surgiu da recombinação entre estirpes de PVYO e PVYN, mostrando reação sorológica positiva com anticorpo monoclonal (específico) contra PVYO, ou seja, em laboratório, PVYN:O é identificado como PVYO. Porém, esta mesma variante causa necrose de nervuras em fumo, o que é uma reação biológica característica de PVYN (Nie et al., 2004). O PVYN:O pode ou não causar sintomas em tubérculos. Na cultivar Yukon Gold já foram detectados pequenos anéis ou manchas junto à inserção do estolão (Dr. Rudra P. Singh – comunicação pessoal).


O subgrupo PVYNTN, pelos dados moleculares hoje disponíveis, provavelmente surgiu depois do subgrupo PVYN:O, já que o PVYNTN apresenta maior complexidade como recombinante (Nie & Singh, 2003). Muito possivelmente o subgrupo PVYNTN surgiu da recombinação entre os genomas de PVYN:O e da estirpe Eu-PVYN, conhecida como estirpe européia (Singh, 2003). Não é possível distinguir através de sintomas em plantas de fumo os subgrupos PVYNTN, PVYN:O e até mesmo PVYN, já que todos induzem sintomas de necrose das nervuras nesta hospedeira (Figura 1b). Os sintomas de PVYNTN em folhas de batata são mosaico leve a severo e pontuações cloróticas que variam em número e tamanho (Figura 1c). Essa variante tem a particularidade de induzir com frequência sintomas de necrose na superfície do tubérculo, no formato de anéis, números ou letras (Figura 1d,e). Esses sintomas também podem aparecer durante a armazenagem dos tubérculos-sementes em câmara- fria. É importante salientar que nem sempre a infecção das plantas de batata por PVYNTN induz o surgimento de sintomas nos tubérculos. A expressão ou não de sintomas nos tubérculos irá depender da associação de diferentes fatores como, por exemplo, suscetibilidade da cultivar, idade da planta, variantes do vírus, infecções mistas e condições ambientais.


A detecção do PVY é complexa quando se trata de diferenciar estirpes e subgrupos necrótico do vírus. O anti-soro policlonal de PVY vendido comercialmente e também produzido por instituições de pesquisa detecta todas as estirpes, subgrupos e variantes do PVY, indiferente de serem necróticas ou não. O que aparentemente é uma desvantagem, na realidade é bastante útil do ponto de vista prático. Sendo capaz de identificar todo tipo presente de PVY, o anti-soro policlonal é o mais indicado para monitoramento de níveis de infecção em batata-semente. Recomenda-se a sua utilização pelos laboratórios credenciados pelo MAPA e também por empresas privadas para avaliação da qualidade fitossanitária da batata-semente produzida.


Existem várias publicações que tratam da diferenciação de estirpes, subgrupos e variantes do PVY (PVYO, PVYN, PVYN:O e PVYNTN). No nosso ponto de vista, para diferenciar as estirpes PVYO e PVYN e identificar os subgrupos necróticos PVYN:O e PVYNTN, o melhor é utilizar de forma combinada anticorpos monoclonais, ou seja, específicos contra PVYO e PVYN, e testes moleculares do tipo RT-PCR (Nie & Singh, 2003). RT-PCR já pode ser realizado a partir de “kits” comerciais, embora o custo ainda seja muito elevado.


A dúvida é se os “kits” são capazes de diferenciar o subgrupo PVYN:O do subgrupo PVYNTN.


2. A disseminação de estirpes de PVY no Brasil e no mundo: Breve Histórico, Ocorrência, Danos Econômicos e Produção de Batata.
Na última década, em função do surgimento de subgrupos recombinantes do vírus como, por exemplo, PVYN:O e PVYNTN, houve uma dramática alteração na distribuição de estirpes de PVY em batata no Brasil (Figura 2) e no mundo. O primeiro relato da ocorrência de PVYNTN foi feito em 1984, na Hungria. Desde então, este subgrupo necrótico disseminou-se por países da Ãsia, Europa e América, tendo sido relatado nos Estados Unidos, Canadá e Brasil. Um bom exemplo acerca dos danos que esse subgrupo necrótico pode causar foi a paralisação do uso comercial da cultivar Igor na Eslovênia, entre 1988 e 1991.
No Brasil, o primeiro alerta fitossanitário sobre o perigo da introdução de PVYNTN através de tubérculos importados foi feito em 1996, pelo Dr. José Alberto Caram de Souza Dias, do Instituto Agronômico de Campinas. Desde então, esse subgrupo necrótico rapidamente se disseminou por praticamente todas as regiões batateiras do Brasil. Um levantamento realizado pela Embrapa Hortaliças abrangendo 1.256 amostras de batata nos anos de 2005 e 2006, verificou dois aspectos muito relevantes:


1. A incidência de mosaico em campos de batata para consumo e para semente está muito alta;
2. A quase totalidade dos sintomas de mosaico, mais de 80%, era causada exclusivamente por estirpes/subgrupos necróticos do PVY em todas as regiões amostradas, muito provavelmente, em sua maioria, variantes do subgrupo recombinante PVYNTN (Figura 2).


Embora a metodologia de RT-PCR que utilizamos (Weilguny & Singh, 1998) não permita diferenciar o PVYN:O do PVYNTN, não há razões para acreditar que não tenhamos ambos os subgrupos recombinantes. A diferenciação entre esses subgrupos através de sintomatologia é muito sutil, mas os sintomas observados no campo sugerem a presença também do subgrupo recombinante PVYN:O. Uma sub-amostragem em todos os municípios visitados verificou que o subgrupo PVYNTN está hoje presente nos Estados do Espírito Santo, Goiás (Cristalina), São Paulo (Vargem Grande do Sul e Itapetininga), Minas Gerais (Bom Repouso, Senador Amaral, Serra do Salitre e Perdizes), Bahia (Mucugê e Ibicoara – Distrito de Cascavel), Paraná (Araucária – Distrito Fazendinha, Castro, Castrolanda e Contenda) e Santa Catarina (Canoinhas, Irineópolis, Mafra e Papanduva). Entre os Estados de maior relevância como produtores de batata, apenas o Rio Grande do Sul não foi incluído no levantamento. Embora com diferentes níveis de suscetibilidade, o PVYNTN no Brasil  á foi detectado nas cultivares Asterix, Atlantic, Ãgata, Achat, Baronesa, Baraka, Bintje, Caesar, Cupido, Marijke, Monalisa, Panda e Vivaldi. Isso não quer dizer que cultivares que não estejam nesta lista não sejam suscetíveis ao PVYNTN.



Figura. 1. (a) Sintomas de manchas peroladas no limbo de Nicotiana tabacum infectada por PVYO; (b) sintomas de necrose foliar em N. tabacum típicos de PVYN ou PVYNTN; (c) sintomas de mosaico severo e manchas cloróticas em folhas de batata infectadas com PVYNTN; (d, e) sintomas em tubérculos infectados por PVYNTN. Brasília Embrapa Hortaliças, 2007.



Os estudos moleculares sobre PVY em batata no Brasil ainda são incipientes e não permitem conclusões seguras. Muito provavelmente os subgrupos necróticos recombinantes que acontecem hoje no Brasil não tiveram uma origem única. É praticamente certo que tenham sido introduzidos no país via batata-semente importada, mas também é praticamente certo que recombinações espontâneas tenham acontecido e continuem acontecendo em nossas condições. Essa origem múltipla e o surgimento dinâmico de novas variantes tornam a situação epidemiológica de PVY em batata bastante complexa. Não há outra forma de estudar com segurança esses eventos recombinantes que não seja através do sequenciamento completo do genoma de vários isolados de PVY. Sem esse tipo de estudo, torna-se muito difícil desenhar sistemas eficientes de controle dessa virose.



 



Várias são as razões para a rápida disseminação das variantes necróticas no Brasil. Pelo lado do PVY, foram determinantes (1) a alta virulência dos subgrupos necróticos e (2) a enorme pressão de inóculo no campo, que aumenta as chances de novos eventos recombinantes de PVY acontecerem. Pelo lado da legislação, contribuiu decisivamente para a prevalência de isolados do subgrupo necrótico e para o aumento da incidência de PVY, a alteração das normas de certificação de sementes e mudas. A legislação atual permite que o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA delegue a certificação das sementes a “Entidades Certificadoras”. Porém, como muito bem indicado pela fitovirologista Dra. Antônia dos Reis Figueira (Batata Show, ano 6, n. 16, dezembro de 2006, p. 28) “como não houve, até o momento, o surgimento de nenhuma entidade certificadora, o produtor de batata-semente se encontrou em uma situação emergencial, em que necessitava se credenciar para fazer a certificação da sua semente”.
Tal fato, levou a uma enorme informalização do sistema de produção de sementes. Em nosso levantamento encontramos campos de batata que, apesar de terem sido instalados com semente certificada, apresentavam altíssima incidência de mosaico, superior a 80%, causado por PVY. Além disso, verificamos que muitos bataticultores produzem semente para uso próprio a partir de minitubérculos, em geral, de alta qualidade fitossanitária. Porém, quando os minitubérculos são multiplicados em campo, medidas decisivas para manter a qualidade fitossanitária em padrões desejáveis, como o isolamento entre campos de produção de batata para consumo e para semente e a erradicação de plantas com sintomas, são ignoradas. Consequentemente, observa-se a rápida degenerescência da batata-semente pelo PVY e outros patógenos, principalmente de solos. É importante também mencionar que vírus, como o enrolamento-da-folha (PLRV), há muito sob controle, começam a aumentar sua incidência progressivamente nos campos de batata, pelas mesmas razões mencionadas anteriormente. Felizmente outros vírus, como PVS e PVX, ainda continuam com detecção em baixos níveis, fato esse que vem se repetindo por várias décadas. Tal situação é muito oportuna, porque a combinação PVY/PVX aumenta as perdas na batata.


É preciso, urgente e inevitável que enfrentemos o problema. As variantes do subgrupo necrótico do PVY vieram para ficar. Suas consequências para a cadeia brasileira da batata, em geral, e para os produtores, em especial, tem gosto amargo. Porém, é possível conviver de forma muito satisfatória com esta doença, como, no passado já o fizemos. A chave-do-segredo? Batata-semente de qualidade! Para começar, devemos partir para uma discussão limpa, clara e desarmada da forma como a batata-semente está sendo produzida com base na legislação vigente.


Não se produz batata-semente de alta qualidade fitossanitária sem um certificação efetiva, que garanta a aplicação das boas práticas devidamente previstas na legislação. Não há qualidade inicial da batata-semente, por maior que tenha sido o seu custo, que substitua as medidas preconizadas pela legislação para sua multiplicação. A batata-semente nacional produzida hoje representa um franco retrocesso na capacidade brasileira de obter este insumo com alta qualidade fitossanitária, como era feito no passado.


Neste momento, ainda não é possível responder à pergunta que intitula este artigo: O VÍRUS Y DA BATATA (Potato virus Y) E A BATATA-SEMENTE NACIONAL: quem vencerá? Ao vencedor, as batatas!


Referências:
Consulte o Autor


Agradecimentos
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, ABASMIG (José Daniel Rodrigues Ribeiro e Antônio Garcia Brandão), ABBA (Natalino Shimoyama), Associação do Irrigantes do Alto Paraguaçú (Kiyoshi Ishida, Hercílio de Assis Pereira), Castrolanda (Cleudiney Aparecido Iank), EMATER – PR (Paulo Roberto Fiorillo, Hamilton Borges), Embrapa Transferência de Tecnologia – Escritório de Negócios de Canoinhas (Odone Bertoncini, Gregório Heuko, Élcio Hirano), EMCAPER (Élcio Costa), Grupo Nascente (Edson M. Asano), IAPAR (Nilceu R.X. Nazareno), Montesa (Marcelo Balerini de Carvalho, Felipe Campos Vieira), Nagano Kinzi (Hélio Fabri Jr.).
Nosso especial agradecimento a todos os produtores, da Bahia à Santa Catarina, que gentilmente cederam seus campos para amostragem.


 

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