Sarna prá coçar 1

A sarna-comum, causada por algumas espécies da bactéria do gênero Streptomyces (a espécie mais comum parece ser S. scabies), é assunto cada vez mais discutido entre os batateiros. Essa discussão resulta em uma demanda crescente e tem motivado alguns (infelizmente poucos) pesquisadores a “encarar” um patossistema tão complexo, embora os mais experientes já partam do princípio que nenhuma solução milagrosa deva ser vislumbrada em curto prazo.


Mas essa preocupação não ocorre só no Brasil. Prova disso foi a realização de um evento internacional dedicado ao tema, a Conferência Internacional da Sarna Comum da Batata, realizada em Guelph, Ontário, Canadá, em março de 2007, onde se constatou que, para os produtores canadenses, essa é a terceira doença em ordem de importância, atrás somente da requeima e da podridãoanelar.


E, embora centenas de trabalhos tenham sido apresentados, quase nada se evoluiu em termos de medidas práticas de controle, embora se tenha reforçado a necessidade de não se poder desprezar as conhecidas táticas de manejo integrado baseadas na correção do solo, na irrigação adequada e no uso de batata- semente de boa qualidade.


Mas qual é o segredo desses aparentemente inofensivos Streptomyces, porém capazes de causar uma doença que tem desafi ado cientistas de todo mundo há uma centena de anos? As opiniões sobre sua etiologia, epidemiologia e controle são várias e raramente coincidentes; basta conversar com pesquisadores, professores e produtores, e cada um terá suas explicações, com seus argumentos preferidos.


Eu também tenho as minhas, e as faço em forma de considerações para reflexão, com o objetivo de esclarecer fatos e desfazer mitos, porém com a intenção prática de inibir eventuais postulantes a reinventores da roda ou vendedores ambulantes de soluções milagrosas. Que essas considerações não sejam, entretanto, desestimuladoras de novas pesquisas. Muito pelo contrário, o que se precisa são mais pesquisas, boas pesquisas, com hipóteses sólidas e metodologias adequadas, com equipes multidisciplinares em cooperação efetiva e, enfatizando, participação dos produtores para a realização de experimentação local.


Considerações


1. Sarna-comum: doença ou complexo?
Se considerarmos que uma doença é o resultado da combinação hospedeira x patógeno x ambiente, conceito amplamente aceito pela fi topatologia, concluiremos que a sarna-comum não é uma única doença, mas um complexo, ou seja, várias doenças. Ora, se existem várias espécies de Streptomyces capazes de infectar tubérculos de batata, cada combinação “espécie do patógeno” x hospedeira será uma doença, com suas peculiaridades, que certamente serão condicionadoras da efi cácia das táticas de controle. Por exemplo, se o patógeno é S. scabies ou S. acidiscabies, as doenças serão diferentes; daí, a medida de controle baseada na manutenção de pH baixo (menor que 5,5) será mais efi ciente para a primeira. Isso sem levar em conta a inquestionável variabilidade patogênica dentro de cada uma das 10 espécies já relatadas como causadoras da sarna-comum.


2. Ambiente, o macro e o micro
Novamente levando em conta o conceito epidemiológico baseado no trinômio hospedeira x patógeno x ambiente, a situação se complica mais ainda ao considerarmos a variação do meio ambiente no sistema acima descrito. Ou seja, para cada binômio patógeno x hospedeira, haverá um ambiente específi co afetando o desenvolvimento da planta, bem como a sobrevivência e a multiplicação do patógeno, o processo de infecção e o desenvolvimento da lesão. Lembrando ainda que esse ambiente não se restringe a temperatura e umidade, mas principalmente ao microcosmo associado com a rizosfera da planta, como o pH, textura e estrutura do solo, que condicionam a manutenção da umidade que, por sua vez, afetam signifi cativamente o desenvolvimento da doença. Exemplo disso é a inconsistência dos dados a respeito do efeito da matéria orgânica no solo na manifestação da sarna-comum. Certamente, o tipo de material incorporado e a velocidade da decomposição da matéria orgânica afetam sobremaneira a composição microbiana e, consequentemente, a manifestação da doença.


3. Balanço microbiano do solo e a doença
Embora seja de mais interesse aos microbiologistas que aos fi topatologistas, não se pode negligenciar a importância do complexo balanço entre os microrganismos no solo. Dentre esses, existem milhares de espécies de Streptomyces, das quais cerca de 200 delas podem estar presentes em uma mesma lavoura. Como representantes desse gênero se destacam entre os produtores de antibióticos, pode-se concluir que o balanço entre essas espécies será forte determinante da capacidade conduciva ou supressiva do solo em relação à sarna- comum. Daí não ser difícil perceber que, ao se romper o balanço populacional entre as espécies, por meio de tratos culturais, adubação, agrotóxicos etc, pode-se sair de uma situação de ausência da doença para uma com alta infestação de tubérculos, ou vice-versa, embora as variações sutis sejam as mais esperadas.


De fato, o balanço entre as espécies de Streptomyces na lavoura, embora não seja o único, é fundamental para explicar aquela velha, conhecida e intrigante história de a doença aparecer ou desaparecer de um ano para outro em um mesmo campo, respostas quase sempre atribuídas à qualidade da semente, na tecnologia de aplicação de água ou no histórico da doença no campo, fatores que, sem dúvida não podem ser negligenciados.


4. Usando a diversidade microbiana para o controle biológico
Se é realmente verdade que cepas bacterianas responsáveis pela supressão da sarna-comum são abundantes no solo, por que então estas não foram isoladas e disponibilizadas comercialmente para serem aplicadas ao solo para a promoção do controle biológico? As explicações podem se expandir, mas deixo duas para análise:


• porque é difícil aceitar que o efeito supressivo de um solo possa ser estabelecido por somente uma ou poucas cepas (quase a totalidade das pesquisas têm sido conduzidas dessa maneira) que, quando incorporadas ao solo, será(ão) sufi cientemente competitiva(s) a ao mesmo tempo virulenta(s) seletivamente para todas as cepas patogênicas;


• porque nem sempre as cepas antagonistas às cepas patogênicas podem cultivadas in vitro pelo fato de serem muito bem adaptadas ao solo.


Além disso, após cultivo em meio artifi cial, o metabolismo da bactéria pode se modifi car, em virtude de ela não mais necessitar de um conjunto de enzimas para sua sobrevivência e multiplicação, fazendo com que isolados percam a capacidade antagônica após repicagens sucessivas in vitro.


5. Selecionando cultivares resistentes
A clássica e elegante forma de controle de doenças de plantas por meio de cultivares resistentes merece maior atenção da pesquisa. Entretanto, alerto para o fato de que nenhum genótipo com alto nível de resistência foi ainda identifi cado, sugerindo que a resistência em Solanum tuberosum seja poligênica e, portanto, com resistência intermediária, ainda sujeita a ser afetada pelo ambiente. Além disso, não se pode perder de vista a variabilidade inter e intraespecífi ca de Streptomyces, que difi culta sobremaneira a identifi cação de genótipos de batata com resistência estável2 à sarna-comum. Por exemplo, um genótipo selecionado como resistente em São Joaquim, SC, seria também resistente em Ibicoara, BA, onde o clima é tão diferente e a composição de espécies e cepas de Streptomyces (principalmente as patogênicas) provavelmente é bem distinta? Essas indagações deixam clara a necessidade de:


• estudar a variabilidade do patógeno no Brasil. Destaco que esse estudo, que exige certa sofi sticação tecnológica e tem que ser conduzido em laboratórios adequadamente equipados, inclusive com ferramentas moleculares, já vem sendo feito no Estado de São Paulo, em uma parceria do IB e IAC, que merece continuado apoio de diferentes ordens, principalmente dos produtores, individualmente ou por meio de associações, como a ABBA, ABASMIG e outras;


• realizar testes locais ou regionais.


Essa necessidade se deve a uma provável predominância regional de cepas3 de Streptomyces spp. em função do macro e do microambiente predominantes. Isso requer envolvimento com instituições de pesquisa, mas depende muito mais da disposição do produtor em realizar a experimentação, que é relativamente fácil de ser conduzida, desde que haja adequada capacitação de responsáveis técnicos pela lavoura. A identifi cação de terrenos infestados no Estado de São Paulo e o início da avaliação de clones e cultivares são louváveis iniciativas do Dr. Hilario Miranda em busca dessas respostas.


6. O complexo de espécies e as normas quarentenárias Um problema de solução bastante difícil, que não deve encarado com a atual simplicidade facilitadora do operacional. As normas de importação de batata admitem certa tolerância para tubérculos com sarna-comum. Certamente essa tolerância se deve ao fato de o patógeno já estar disseminado em todo território nacional. Mas, afi nal, não existem “muitas sarnas-comuns”, cada qual com seu patógeno, dentre as mais de 10 espécies de Streptomyces? Sabemos quais dessas espécies estão presentes, permitindo a tolerância específi ca indicada na legislação? Essa tolerância não seria uma porta aberta para a entrada de espécies exóticas do patógeno?


Diante dessas dúvidas, seria a sarnacomum uma doença tão importante a fi m de “barrar” toda a importação de batata-semente, já que ainda não temos condições práticas e rápidas de identifi – car precisamente o patógeno nos portos de entrada?


Levantados os problemas, fi ca então a minha sugestão: que a tolerância atual seja mantida, até que se demonstre que existem valores mais adequados. Mas que se reforcem as pesquisas para que, em tempo não muito longo, tenhamos na legislação uma subdivisão das “sarnas-comuns” por espécies do patógeno, porém obviamente atrelada à disponibilidade de testes rápidos que permitam aos fi scais identifi carem precisamente a espécie do patógeno.


7. Controle químico: a solução milagrosa?
É normal que a solução química seja buscada para a sarna-comum. Afinal, não funciona tão bem para tantas outras doenças de plantas, inclusive da batata? Mas é bom não negligenciar o fato de que o controle de bactérias tem sido muito mais complexo do que o controle de fungos, que são os patógenos de plantas mais abundantes na natureza.


Basta lembrar que as moléculas com ação bactericida atualmente disponíveis (registradas) para o controle de doenças de plantas foram desenvolvidas há dezenas de anos.


O fato de que a efi cácia dos produtos disponíveis e recomendados para o controle da sarna-comum é, no mínimo, duvidosa ou irregular, outra questão complicadora que merece debate é a capacidade de o produto atingir o alvo na concentração adequada. Por ser um organismo altamente adaptado à sobrevivência no solo, Streptomyces tem distribuição horizontal e vertical que o fazem escapar da ação de agrotóxicos.


Mesmo que o produto seja efi caz, certamente um grande número de propágulos da bactéria escaparão e serão sufi cientes para desencadear uma epidemia em maior ou menor grau, dependendo das condições ambientais (macro e micro). Outra afi rmação que merece reflexão: a ação do agrotóxico poderá afetar mais a população de microrganismos antagônicos ao patógeno (item 2), resultando até em um aumento da doença.


Recomendações finais:
1. A complexidade da “sarna-comum da batata” requer que se fortaleça a pesquisa multidisciplinar no tema, com a participação efetiva das instituições de ensino, pesquisa, extensão e, principalmente dos produtores;
2. Resultados obtidos localmente devem ser analisados e discutidos de forma conjunta, em fórum especial, como o de iniciativa da ABBA nos encontros nacionais ou regionais;
3. Ações programadas de pesquisa no tema devem ser previamente discutidas com um grupo consultivo para permitir maior alcance dos resultados – sugestão: o Dr. Hilario Miranda deve ser o coordenador do grupo consultivo, pela sua liderança e grande experiência prática.


1 Contribuição para o debate promovido pela ABBA sobre a sarna-comum no XIII Encontro Nacional de Produção e Abastecimento de Batata e IX Seminário Nacional de Batata Semente, 23-25 de outubro de 2007, Holambra, SP.


2 Embora a variabilidade do patógeno seja grande, é possível que um ou um conjunto de genes em proximidade no cromossomo confi ra resistência estável, como no caso do gene Mi, que confere resistência a várias espécies e raças do nematóide do gênero Meloidogyne em tomate.


3 Predominância local de cepas pode não ocorrer em virtude de cepas exóticas poderem ser facilmente introduzidas via batata-semente.


Carlos A. Lopes
Pesquisador da Embrapa Hortaliças
clopes@cnph.embrapa.br


 

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